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Reflexos

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Em 1952, em Guayaquil, Equador, nasceu Jenny Londoño, hoje professora, socióloga, activista na luta pelos direitos e igualdade entre homens e mulheres. Em 1992, o poema Reencarnações, que aqui se transcreve, obteve o primeiro prémio no concurso de poesia “Gabriela Mistral”, realizado em Quito, Equador. Fonte

REENCARNAÇÕES
Venho desde ontem, do passado obscuro,
com as mãos atadas pelo tempo,
com a boca selada desde épocas remotas.
Venho carregada de dores antigas
recolhidas por séculos,
arrastando correntes longas e indestrutíveis.
Venho do fundo do poço do esquecimento,
com o silêncio às costas,
com o medo ancestral que tem corroído a minha alma
desde o princípio dos tempos.
Venho de ser escrava por milénios.
Submetida ao desejo do meu raptor na Pérsia,
escravizada na Grécia pelo poder romano,
convertida em vestal nas terras do Egipto,
oferecida aos deuses em ritos milenares,
vendida no deserto
ou avaliada como uma mercadoria.
Venho de ser apedrejada por adúltera
nas ruas de Jerusalém,
por uma turba de hipócritas,
pecadores de todas as espécies
que clamavam aos céus o meu castigo.
Fui mutilada em muitos povos
para privar o meu corpo de prazeres
e convertida em animal de carga,
trabalhadora e parideira da espécie.
Violaram-me sem limites
em todos os cantos do planeta,
sem que conte a minha idade madura ou tenra
ou importe a minha cor ou estatura.
Tive que servir ontem aos senhores,
submeter-me aos seus desejos,
entregar-me, doar-me, destruir-me
esquecer-me de ser uma entre milhares.
Fui barregã de um senhor de Castela,
esposa de um marquês
e concubina de um comerciante grego,
prostituta em Bombaim e nas Filipinas
e sempre foi igual o meu tratamento.
De uns e de outros, sempre escrava,
de uns e de outros, dependente.
Menor de idade em todos os assuntos.
Invisível na história mais longínqua,
esquecida na história mais recente.
Eu não tive a luz do alfabeto
durante muitos séculos.
Adubei com as minhas lágrimas a terra
que devia cultivar desde a infância.
Percorri o mundo em milhares de vidas
que me foram entregues uma a uma
e conheci todos os homens do planeta:
os grandes e pequenos, os bravos e cobardes,
os vis, os honestos, os bons, os terríveis.
Mas quase todos levam a marca dos tempos.
Uns manejam vidas como amos e senhores,
asfixiam, aprisionam, sugam e aniquilam;
outros manejam almas, negoceiam com ideias
assustam ou seduzem, manipulam e oprimem.
Uns contam as horas com o fio da fome
atravessado no meio da angústia.
Outros viajam nus pelo seu próprio deserto
e dormem com a morte metade do dia.
Conheço-os a todos.
Estive perto de uns e de outros,
servindo cada dia, recolhendo migalhas,
baixando a cabeça a cada passo, cumprindo o meu carma.
Percorri todos os caminhos.
Arranhei paredes e ensaiei silêncios,
tratando de cumprir as ordens
de ser como eles querem,
mas não o consegui.
Jamais se permitiu que eu escolhesse
o rumo da minha vida
e caminhei sempre numa alternativa:
ser santa ou prostituta.
Conheci o ódio dos inquisidores,
que em nome da “santa madre Igreja”
condenaram o meu corpo ao seu serviço
ou às infames chamas da fogueira.
Chamaram-me de múltiplas maneiras:
bruxa, louca, adivinha, pervertida,
aliada de Satanás,
escrava da carne,
sedutora, ninfomaníaca,
culpada de todos os males da terra.
Mas continuei vivendo,
arando, colhendo, costurando,
construindo, cozinhando, tecendo,
curando, protegendo, parindo,
criando, amamentando, cuidando
e, sobretudo, amando.
Povoei a terra de senhores e de escravos,
de ricos e mendigos, de génios e de idiotas,
mas todos tiveram o calor do meu ventre,
o meu sangue e o seu alimento
e levaram com eles um pouco da minha vida.
Consegui sobreviver à conquista
brutal e desapiedada de Castela
nas terras da América,
mas perdi os meus deuses e a minha terra
e o meu ventre pariu gente mestiça
depois do castelhano me tomar à força.
E neste continente manchado
prossegui a minha existência,
carregada de dores quotidianas.
Negra e escrava no meio da fazenda
vi-me obrigada a receber o amo
quantas vezes ele quisesse,
sem poder expressar nenhuma queixa.
Depois fui costureira,
camponesa, servente, lavradora,
mãe de muitos filhos miseráveis,
vendedora ambulante, curandeira,
cuidadora de meninos ou anciãos,
artesã de mãos prodigiosas,
tecelã, bordadeira, operária,
professora, secretária, enfermeira.
Sempre servindo todos,
convertida em abelha ou sementeira,
cumprindo as tarefas mais ingratas,
moldada como um cântaro por mãos alheias.
E um dia doí-me das minhas angústias,
um dia cansei-me das minhas azáfamas,
abandonei o deserto e o oceano,
desci da montanha,
atravessei as selvas e as fronteiras
e converti a minha voz doce e tranquila
em sopro de vento
em grito universal e enlouquecido.
E convoquei a viúva, a casada,
a mulher do povo, a solteira,
a mãe angustiada,
a feia, a recém-parida,
a violada, a triste, a calada,
a formosa, a pobre, a aflita,
a ignorante, a fiel, a enganada,
a prostituída.
Vieram milhares de mulheres juntas
escutar a minhas arengas.
Falou-se de dores milenares,
de longos grilhões
que os séculos nos fizeram carregar às costas.
E formámos com todas as nossas queixas
um caudaloso rio que começou a percorrer o universo,
afogando a injustiça e o esquecimento.
O mundo ficou paralisado
‘Os homens sem mulheres não caminham!’
Pararam as máquinas, os tornos,
os grandes edifícios e as fábricas,
ministérios e hotéis, oficinas e escritórios,
hospitais e lojas, lares e cozinhas.
As mulheres – por fim, descobrimo-lo
‘Somos tão poderosas como eles
e somos muitas mais sobre a terra!
Mais que o silêncio, mais que o sofrimento!
Mais que a infâmia e mais que a miséria!’
Que este cântico ressoe
nas longínquas terras da Indochina,
nas areias cálidas de África,
no Alasca ou na América Latina.
Que o homem e a mulher se apropriem
da noite e do dia,
que se juntem os sonhos e os gozos
e se aniquile o tempo da fome e da seca.
Que se quebrem os dogmas e o amor brote novo.
Homem e mulher, lançando a semente,
mulher e homem de mãos dadas,
dois seres únicos, diferentes, mas iguais.

 

Tradução do Espanhol: Maria E. Catela

Sobre a Verdade

MC 31 Oct 11

VERDADE

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

 Carlos Drumond de Andrade (Brasil, 1902-1987)

 

Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada.
Clarice Lispector (1920 - 1977), escritora brasileira de origem judia nascida na Ucrânia.

 

 

 

Iniciou-se na poesia aos 23 anos de idade. O seu primeiro livro intitulava-se 17 dikter (17 Poemas).  A maior parte da sua obra é escrita em verso livre, embora também tenha feito experiências com linguagem métrica. Redigiu cerca de uma quinzena de obras numa longa carreira dedicada à escrita. Foi psicólogo de profissão até 1990.

Nesse ano, foi vítima de um acidente vascular cerebral, que o deixou parcialmente afásico e hemiplégico. Continuou a escrever com a ajuda da mulher e publicou três obras, a mais citada "O Grande Enigma: 45 Haikus". Vive presentemente numa ilha, longe dos olhares do mundo e dos meios de comunicação.

É o poeta sueco mais traduzido no Mundo, já que os seus poemas foram publicados em mais de trinta línguas. Recebeu numerosos prémios literários.

 Dados compilados da Wikipédia e da Revista Cultural Agulha.

Seguem-se dois poemas retirados do livro 20 Poems.

 

O Casal

 

Apagam a luz e o globo branco brilha

um instante e, depois, dissolve-se, como um comprimido

num copo de escuridão. Depois, aumenta.

As paredes do hotel disparam para a escuridão do céu.

 

Os seus movimentos tornaram-se mais suaves e dormem,

mas os seus pensamentos mais secretos começam a encontrar-se

como duas cores que se encontram e escorrem juntas

sobre o papel molhado de uma pintura de um menino de escola.

 

Está escuro e silencioso. A cidade, contudo, aproximou-se

esta noite. Com as suas janelas desligadas. Vieram casas.

Mantêm-se juntas e muito perto, esperando,

uma multidão de gente de rostos brancos.

 Tradução do inglês de Maria Catela

 

 

Depois de uma Morte

 

Uma vez foi um choque,

que deixou para trás uma longa e cintilante cauda de cometa.

Mantém-nos dentro de casa. Torna nevada a imagem da TV.

Aquieta-se em gotas frias sobre os fios de telefone.

 

Pode-se ainda ir de skis devagar sob o sol de inverno

através de arbustos onde algumas folhas se demoram.

Parecem páginas arrancadas de velhas listas telefónicas.

Nomes engolidos pelo frio.

 

É ainda maravilhoso sentir o coração a bater,

mas a sombra parece muitas vezes mais real que o corpo.

O samurai parece insignificante

por trás da armadura de escamas do dragão negro.

 Tradução do inglês de Maria Catela

Poesia Matemática

MC 29 Sep 11

Millôr Fernandes

Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.

 

Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
"Quem és tu?", indagou ele
em ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidianas
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.

 

E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.

 

Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
freqüentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.


Texto extraído do livro "
Tempo e Contratempo", Edições O Cruzeiro - Rio de Janeiro, 1954, pág. sem número, publicado com o pseudônimo de Vão Gogo.

Recolhido do sítio Releituras.

 

A PEDRA

MC 14 Sep 11

O distraído, nela tropeçou,
o bruto a usou como projétil,
o empreendedor, usando-a construiu.
o campônio, cansado da lida,

dela fez assento.

Para meninos, foi brinquedo,

Drummond a poetizou,

 

Já Davi matou Golias...

Por fim;

o artista concebeu a mais bela escultura.

 

 

 

Praça dos Restauradores, Lisboa (Foto de Wikipédia

E em todos esses casos,

a diferença não esteve na pedra.

Mas no Homem.

Antonio Pereira (in Apon. Poema publicado em 1999 no livro Essência)

* * *
E agora, a poetização de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), na revista Antropofagia, em 1928. Vejam como a pedra pode ser um escolho (quase) inultrapassável no meio de um caminho...

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

(in Cultura Brasileira)

* * *
A pedra é um elemento muito presente nas expressões da língua portuguesa, não só na poesia. Diz-se, por exemplo, de quem impressiona, que "faz chorar as pedras da calçada". Isto porque, antigamente, "era nas pedras da calçada que os cantores exerciam o seu ofício. Essas canções eram, normalmente, dolentes e tristes". (in Centro de Exames da Fundação Rei Afonso Henriques, em 14.09.11)
* * *

 

Uma leitora atenta recordou-me "as pedras" de Fernando Pessoa, que afinal constam do primeiro poema publicado neste espaço. Vão lá ver!

 

Maria Catela

foto do autor

"A memória é a consciência inserida no tempo." Fernando Pessoa

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  • Claudemir

    Olá ProfessoraGostaria de enviar-te um e-mail com ...

  • João Sá

    Bom dia :)O blog está em destaque na homepage dos ...

  • M.E.C.

    Olá! Que bom - toda a divulgação é uma ajudinha......