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Reflexos

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Contribuição para a Conferência sobre o Ensino Superior, Praia, Maio 2010

Como docente do ensino superior num país de expressão portuguesa, preocupa-me profundamente a generalizada dificuldade dos alunos no domínio da língua de ensino - o Português. Neste contexto, compreende-se que os alunos tenham dificuldade em aprender os diversos conteúdos específicos numa língua que, ainda que língua oficial, não seja a sua língua materna. Trata-se, pois, da sua segunda língua. 

Não compete fazer aqui uma avaliação de como o sistema educativo está a tratar o assunto, o que competirá às instâncias estatais. O que é facto é que os alunos que ingressam no ensino superior apresentam, ainda que dentro de uma grande variação de grau, uma deficiente capacidade de se expressar, por escrito e oralmente. Esta limitação tem como consequência a enorme dificuldade de compreensão dos conteúdos e a impossibilidade de os trabalhar a níveis intelectuais superiores, com o subsequente insucesso académico.

Mas porque chegam os alunos ao ensino superior com uma limitação tão séria na língua de ensino? Há certamente um conjunto de motivos para tal, mas, atendendo a que o ensino da Língua Portuguesa não pertence, neste caso dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), à família mas sim à escola, alguma coisa está a falhar nos ensinos básico e secundário, de onde os alunos deveriam sair com o domínio da língua, a um nível que lhes permitisse funcionar academicamente. Mas será que o nível da proficiência em Português no final do 12º ano foi pré-determinado?

No ensino superior, constata-se três situações:

    • a primeira, que o nível de excelência dos diplomados está necessariamente a descer, para que completem o curso apesar de tamanhas dificuldades linguísticas, num sistema que requer, sobretudo, a prestação de provas através de trabalhos escritos de toda a ordem – as consequências desta situação para o desenvolvimento de um país são evidentes;
    • a segunda, que os professores se vêem na imprescindibilidade de baixar os seus níveis de exigência, tanto nos conteúdos como nos níveis de exercício intelectual (interpretação, análise, síntese) próprios do ensino que se diz "superior", sob pena de não conseguirem aprovar senão dois ou três alunos;
    • a terceira, que as universidades, vendo-se a braços com tal problema, estejam a oferecer, como parte integrante do plano de estudos dos primeiros anos, uma disciplina de Língua Portuguesa - mas será que um ano de estudo de uma língua proporciona o conhecimento que deveria ser adquirido ao longo de vários anos? E sabemos que aprender uma língua é também aprender a pensar…

Curiosamente, veio ao meu encontro um artigo que analisa precisamente o problema, mas – pasme-se – em Portugal. Nesse artigo, são invocados vários motivos possíveis para explicar o fenómeno, que parece reunir algum consenso quanto, entre outros, à ingerência da tecnologia electrónica no dia-a-dia do estudante e na realização de trabalhos a partir da técnica de copiar/colar, que afinal, alguns de nós, professores, vão aceitando...

Enfim, é altura de uma reflexão séria, quer pelas instâncias estatais responsáveis quer pelas escolas e pelas universidades quer, ainda, pelos próprios docentes, já que a abrangência do problema requer uma solução concertada de todos os parceiros.

Apesar do artigo se referir a Portugal, leiam-no a pensar na realidade que conhecem e vejam se não se lhe aplica!

Aqui vai:

Erros de palmatória cada vez mais frequentes entre universitários

por Kátia Catulo, iOnline, em 15 de Abril de 2010

Das ciências exactas às sociais e humanas, as dificuldades na escrita e na oralidade são comuns aos alunos da maioria dos cursos e universidades

Boa parte dos estudantes universitários é incapaz de escrever sem erros ortográficos, encadear um raciocínio com princípio, meio e fim, interpretar um texto ou perceber o que é dito na aula. São os próprios professores a reconhecer que o domínio da língua portuguesa é uma aprendizagem que a maioria dos seus alunos não fez no ensino secundário e ainda não consegue fazer no ensino superior. As dificuldades atravessam os cursos que vão das ciências sociais e humanas às ciências exactas e estendem-se a disciplinas como História, Matemática, Física, Gestão, Jornalismo ou Ciência Política.

Escrita

A incapacidade de usar a língua portuguesa de forma correcta é um "mal generalizado" entre os alunos de todos os anos, avisa Manuel Henrique Santana Castilho, docente da Escola Superior de Educação de Santarém. "São raros os que conseguem organizar um pensamento e escrevê-lo sem incorrecções", diz o professor que ensina Gestão Educacional aos futuros candidatos a professores do 3º ano. Os erros vão muito além da ortografia e da gramática, conta Isabel Ferreira, que dá aulas de Física aos caloiros do Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa: "Na generalidade, escreve-se como se fala. Os alunos distorcem as palavras para permitir uma colagem entre a grafia e a fonética."

Oralidade

Pior do que a escrita é a oralidade, esclarece Miguel Morgado do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Quando o desafio passa por verbalizar uma ideia ou expor um raciocínio, as fragilidades triplicam: "Há uma enorme dificuldade de os alunos conseguirem responder a uma pergunta com princípio, meio e fim." Ou uma incapacidade de começar e terminar uma frase, mantendo uma "lógica coerente", desabafa Santana Castilho. O discurso é com frequência atropelado por "frases incompletas sem um fio condutor", explica Isabel Ferreira. Nuno Crato, professor de Matemática do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), acrescenta que, regra geral, o vocabulário dos seus alunos "é pobre" e o raciocínio "vago e disperso".

Se o discurso é incoerente é porque não há um esforço de reflexão: "Logo, as intervenções orais são baseadas no improviso", defende João Cantiga Esteves, professor de Finanças no ISEG, em Lisboa. Expressar uma ideia simples é um desafio que poucos conseguem ultrapassar. "Até nos casos em que peço aos alunos para lerem textos em voz alta, a leitura é apressada sem pausas e com total desrespeito pelas vírgulas e parágrafos", diz João Gouveia Monteiro, professor de História da Idade Média e de História Militar da Universidade de Coimbra.

Interpretar

Ler um texto e saber transmitir o que se retirou dessa leitura é uma habilidade de uma minoria, conta Joaquim Fidalgo, que dá aulas de Jornalismo na Universidade do Minho: "Em regra, o discurso é confuso e há uma tendência para complicar conceitos simples." Prestar atenção ao que o professor diz durante a aula e tomar notas em simultâneo é outra tarefa que poucos conseguem desempenhar, alerta a professora de Física do Instituto Superior de Agronomia. Combater essa limitação passa muitas vezes por interromper a aula e pedir à professora para repetir a frase que acabou de dizer: "Um desafio constante tem sido fazê-los primeiro ouvir, para depois escreverem pelas suas palavras, evitando que se caia num regime de ditado."

Dez minutos é, por outro lado, o tempo máximo que dura a concentração de uma turma, conta João Gouveia Monteiro: "Mais do que isso, os alunos começam a dispersar-se e não tenho outra alternativa senão fazer uma pausa." A estratégia do professor passa por contar uma piada ou pedir a um aluno para fazer um comentário sobre a matéria. Após o intervalo, a aula prossegue sem interrupções durante os próximos 10 minutos. A velocidade com que o programa é cumprido é portanto mais lento, explica o director da Imprensa da Universidade de Coimbra: "Há 15 anos demorava duas aulas para ensinar um módulo, hoje levo o dobro do tempo."

Aprendizagem

As deficiências na escrita e na oralidade têm consequências na aprendizagem e na avaliação dos estudantes. "Os alunos perdem a capacidade para compreender conceitos complexos", diz Isabel Ferreira, esclarecendo que os que têm mais dificuldades na expressão escrita e oral são "tendencialmente" os que também têm maiores resistências em dominar os conceitos científicos da disciplina. E, ao não conseguirem expressar o raciocínio, correm o risco de serem penalizados na avaliação: "A partir do momento em que não percebo o que querem transmitir, não posso avaliar os seus conhecimentos", diz Miguel Morgado.

Quanto maiores são as deficiências dos estudantes, menor é o grau de exigência dos professores. Miguel Morgado reconhece que se foi tornando mais tolerante com as falhas dos alunos e hoje há erros que já não considera "assim tão graves". João Gouveia Monteiro admite que entre a classe docente há uma tendência para nivelar por baixo: "Eu, por exemplo, no primeiro semestre do ano passado, chumbei 75% dos meus alunos e, mesmo assim, considero que não fui rigoroso." Isabel Ferreira confessa que teve necessidade de tornar a sua linguagem mais básica para poder ser entendida pelos alunos. O nível de exigência foi descendo sobretudo porque os alunos têm deficiências de base não só a português como a matemática e a física: "Seria impensável fazer testes com enunciados de há 15 anos. Os resultados seriam desanimadores." João Gouveia Monteiro usa outro exemplo para defender a mesma ideia. "A classificação de 18 valores numa prova de hoje equivale aos 12 valores de há 15 anos", conclui. 

8 comentários

De Teresa Henrique a 19.04.2010 às 12:48 pm

Olá, Mili!

Fiquei muito contente com a tua iniciativa de criares um blog! Parabéns! Vou passar a segui-lo com interesse e simpatia. Concordo plenamente com os factos relatados no excelente texto que inseriste. Preocupante é, também, verificar que a grande maioria dos professores do 1º ciclo do Ensino Básico não sabe sequer colocar vírgulas: muitas vezes são usadas entre o sujeito e o predicado! A partir deste exemplo adivinha-se, lamentavelmente, o resto...
Um beijinho!
Teresa Henrique

De M.E.C. a 22.04.2010 às 12:50 am

Olá, Teresa!
Obrigada pelas tuas palavras simpáticas. Temo que não venha a poder ser muito regular na actualização do blog, mas prometo que vou tentar. Se quiseres, podes também consultar o blog do Manel "Na Esquina do Tempo" em brito-semedo.blogs.sapo.cv .
Um abraço,
Mili

De João Paulo a 25.07.2010 às 03:26 pm

Fiquei muito contente com essa reflexão analítica sobre o ensino da língua portuguesa. Apesar de eu não ser Português, creio que em todos os países que tenham a língua portuguesa como oficial, enfrentam esse grave problema de deficiência no ensino. Contudo, temos que ressaltar que, além de o ensino ser deficiente, nós enfrentamos a complexidade e a variedade que o idioma apresenta. Aguardo mais comentários sobre o assunto.

De M.E.C. a 28.07.2010 às 01:07 am

Caro João Paulo,

Obrigada pelo seu interesse e considerações. Apesar de não ser docente de Língua Portuguesa, preocupo-me bastante com a correcção da sua fala e escrita, pois isso é o veículo para que os estudos das outras disciplinas saiam bem. A questão da dificuldade de dominar o Português está no modelo de ensino em países cuja língua materna é outra - não só deve ele ser ensinado como segunda língua, como ainda ser isso feito tendo como referência a(s) língua(s) de substracto. Esta abordagem ainda não foi feita de uma maneira sistemática pelos diferentes sistemas de ensino. As diferentes variantes do Português também põem algumas dificuldades. Mas se se aprender bem uma variante, ler e trabalhar, mesmo, noutra variante já não causará problema - é como trabalhar noutra língua. Diz-se ainda que o Português é difícil - mas já pensou em línguas como o alemão ou o chinês ou...? É uma questão de nos aplicarmos a aprendê-las e de nos orientarem da maneira certa.
Volte sempre!
MC

De Torpedo Gratis a 06.04.2011 às 06:52 pm

Legal!

De LAURA F. DE SOUZA a 29.05.2011 às 04:55 am

Sr. João Paulo, resolvi participar do comentário sobre o artigo, apenas para informar que não é somente a Língua Portuguesa que possui complexidade e variedade. Todas as línguas possuem suas complexidades e/ou variedades. A dificuldade apresentada pela grande maioria das pessoas, no tocante à língua portuguesa, ocorre, em parte, pela forma como lhes é apresentada durante o ensino em sala de aula. Pois, apresentam-lhes uma língua diferente das que eles falam normalmente, e simplesmente dizem que esta é a sua língua materna. Que se eles falarem de forma diferenciada daquela, estarão cometendo um erro linguístico. Quando na verdade, é necessário que seja mostrado o objetivo do ensino da Língua Portuguesa e a diferença existente entre a língua-padrão e a língua não-padrão . Assim, não se criaria um bloqueio tão grande para o aprendizado, como se tem criado ao longo de todos esses anos.

De Vinícius Neves a 12.10.2011 às 07:47 pm

Queria saber sobre Inflação; isso é um assunto, tema de Lingue Portuguêsa ?

_ _'

De Claudemir a 29.10.2011 às 06:21 pm

Olá Professora
Gostaria de enviar-te um e-mail com algumas dúvidas se possível. Meu e-mail é claudemirjrisso@gmail.com.

Grato

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Maria Catela

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"A memória é a consciência inserida no tempo." Fernando Pessoa

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  • Claudemir

    Olá ProfessoraGostaria de enviar-te um e-mail com ...

  • João Sá

    Bom dia :)O blog está em destaque na homepage dos ...

  • M.E.C.

    Olá! Que bom - toda a divulgação é uma ajudinha......